Por Maria João Tomé Rocha, Licenciada em Ciências Farmacêuticas, Doutorada e Agregada em Ciências Biomédicas, Professora Associada Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar (ICBAS), da Universidade do Porto, Co-Investigadora Principal da Equipa de Morfologia Animal e Toxicologia do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR)
Embora essenciais para o desenvolvimento sexual, a regulação do ciclo menstrual e a manutenção da saúde óssea e cardiovascular nas mulheres, os estrogénios têm sido alvo de crescente apreensão na comunidade científica devido ao seu elevado impacto ambiental.
Enquanto farmacêutica e investigadora, com um interesse profundo na saúde humana e ambiental, tenho consagrado uma parte significativa da minha carreira à análise do impacto destas hormonas no nosso ecossistema. Por isso, é com alguma apreensão que partilho convosco algumas informações sobre este tema.
Embora possa ser difícil de imaginar, a realidade é que as mesmas hormonas que regulam funções vitais no nosso organismo estão a causar danos silenciosos nos nossos rios e oceanos. Por conseguinte, tanto os estrogénios sintéticos como os naturais, foram classificados como Compostos Desreguladores Endócrinos (EDCs), uma terminologia muito sugestiva sobre o seu modo de ação, e que soa tão científica quanto preocupante (1).
Portugal tem um elevado consumo de pílulas contracetivas (2). Este facto, apesar de ser visto como um sinal de progresso social, a verdade é que tem um lado sombrio. Isto acontece porque o etinilestradiol (EE2), estrogénio sintético habitualmente presente nestes medicamentos, é mais potente e difícil de degradar nas estações de tratamento do que os estrogénios naturais (3). Como bastam apenas 1 x 10-6 mg/L para vários organismos aquáticos começarem a “sentir” os efeitos nefastos causados por esta hormona ficamos preocupados ao pensar na quantidade de EE2 que pode chegar aos nossos rios e até às nossas praias.
De facto, muitos têm sido os estudos que revelaram que o EE2 promove alterações significativas no sistema reprodutivo, comportamento sexual, e até mesmo casos de feminização em peixes (4).
Na realidade, é como se estivéssemos a reescrever involuntariamente o destino de muitas espécies. Em Portugal, o nosso grupo de investigação tem vindo a estudar a presença de EE2 em rios, estuários e até na nossa costa atlântica (praias), tendo sido encontrados níveis deste estrogénio em quantidades muito superiores às descritas como sendo capazes de induzir alterações fisiológicas significativas, bem como de se acumular e bioconcentrar em animais que podemos consumir (5,6).
No entanto, não são só os animais que “sofrem”. As plantas terrestres, parte dos nossos pulmões verdes, também “sentem” o impacto. Alguns estudos mostram que a irrigação com águas contendo EE2 reduz o crescimento e a germinação de sementes, e que este composto é capaz de se acumular nas partes comestíveis das mesmas (3). É como se a natureza estivesse a lutar contra uma maré invisível de hormonas!
E nós, seres humanos? Também não estamos imunes! A exposição a estrogénios ambientais pode causar uma série de problemas de saúde, com evidências de desequilíbrios hormonais e até de aumento do risco de certos tipos de cancro. É um lembrete sombrio de como a poluição que criamos acaba por nos assombrar de volta.
Pacto Ecológico Europeu e “Contraceção Verde” são boas notícias
Felizmente, nem tudo são más notícias. A União Europeia tem vindo a estabelecer padrões de qualidade ambiental cada vez mais rigorosos. Em 2019, foi apresentado o ambicioso Pacto Ecológico Europeu, que tem como objetivo restaurar a biodiversidade e os ecossistemas, em conformidade com os objetivos da Estratégia de Biodiversidade da UE para 2030 (7). Este regulamento visa estabelecer medidas de restauro
que abrangerão, pelo menos, 20% das zonas terrestres e marinhas da UE até 2030, bem como todos os ecossistemas que necessitem de restauro até 2050.
Enquanto cientistas e cidadãos, temos um papel crucial a desempenhar. Precisamos urgentemente de continuar a melhorar as nossas estações de tratamento de águas residuais e considerar alternativas menos prejudiciais aos estrogénios sintéticos atuais. A esse propósito, alguns estrogénios naturais são uma luz ao fundo do túnel. Recentemente aprovados na Europa, estes estrogénios, apelidados de “Contraceção Verde”, já estão comercializados em pílulas contracetivas combinadas e apresentam um perfil ambiental significativamente melhor que os estrogénios sintéticos, não parecendo afetar a reprodução de peixes, mesmo em concentrações muito mais elevadas do que aquelas que são hoje observadas para o EE2 (8,9).
Embora tenhamos feito progressos, ainda há um longo caminho a percorrer, especialmente em Portugal. Como investigadora, sinto-me simultaneamente desafiada e esperançosa. Cada descoberta, cada melhoria nas nossas práticas, representa um passo em direção a um futuro mais saudável para todos. Juntos, podemos e devemos continuar a lutar por águas mais limpas e um ecossistema mais equilibrado.